(extraído do Jornal PSI – no.
172 de Jun/Jul – 2012 do Conselho Regional de Psicologia SP)
Um ligeiro zoom com o Google Maps sobre algumas áreas em torno
do Cone Sul do Mato Grosso do Sul mostra o que poderia ser uma pintura
abstrata: áreas de cultivo de cana, soja e milho formam um patchwork elegante e discreto em tons suaves de verde e marrom. É a
superfície visível sobre a qual está assentada uma parte do agronegócio
brasileiro, responsável por uma exportação recorde de 95 bilhões de dólares em
2011. O que a ferramenta do Google
não mostra, mesmo elevando-se o zoom
ao máximo, é o sofrimento, a miséria e o genocídio a que vem sendo submetido o
povo Guarani Kaiowá que habita aquela região. Sitiados em aldeias, algumas
espremidas em nesgas de matas cercadas de jagunços por todos os lados, cerca de
2 mil deles tentam se manter vivos, contra todo o poder à sua volta.
O símbolo maior da resistência
a esse avanço é, ainda hoje, o cacique Marcos Veron, assassinado em 13 de
janeiro de 2003, na aldeia Takuara. Levados à julgamento, três pistoleiros
foram condenados por crime de sequestro, tortura e formação de quadrilha, mas
absolvidos do crime de homicídio. O fazendeiro proprietário da fazenda Brasília
do Sul, mandante do assassinato, ainda não sentou no banco dos réus. Desde
então, a violência contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul aumentou.
Em 2007, por exemplo, 35
indígenas foram assassinados e houve pelo menos mais 26 tentativas, algumas
delas envolvendo crianças entre 8 e 12 anos, segundo carta então endereçada à
presidência da República pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Recentemente, em novembro de 2011, uma comunidade Kaiowá foi atacada por cerca
de 40 pistoleiros. Um indígena foi assassinado e quatro desapareceram. Desde a
morte de Veron, 258 lideranças foram exterminadas.
Pode-se procurar, além dos(as)
culpados(as) de sempre, os(as) corresponsáveis por essa situação de
tragédia. O Artigo 231, parágrafo 1 e 4
da Constituição Federal, reconhece o direito à terra originária. Houvessem
essas terras sido demarcadas conforme previsto desde 2008 pela Fundação Nacional
do Índio (Funai) e talvez os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul não
estivessem enfrentando a perda do pouco que
lhes restou em processo de reintegração de posse que corre na justiça federal.
Tivesse havido uma posição mais clara por parte dos órgãos de Estado no sentido
de coibir a violência, e a situação naquela área poderia ser menos
desesperadora. Não é por acaso que o Tribunal Popular da Terra, rede de
organizações voltada à denúncia de violações aos Direitos Humanos realizou, em
São Paulo, dois “julgamentos” do Estado brasileiro.
Tratam-se , é claro, de
julgamentos políticos. Para recolher elementos de prova sobre a situação ali
existente, mas também para dar visibilidade a uma questão que escapa tanto aos
satélites do Google como à pauta jornalística da mídia dominante, o Tribunal Popular
organizou uma expedição à região. Formada por 48 membros, entre eles indígenas,
profissionais e representantes de entidades diversas, a viagem se estendeu dos
dias 11 a 22 de janeiro desta ano e teve como objetivo principal a produção de
um relatório.
(...) O clima de tensão ficou
especialmente evidente no dia da visita à aldeia Laranjeira Nhánderu, no
município de Rio Brilhante. Por ordem da Justiça , os(as) indígenas daquela
aldeia já foram despejados(as) três vezes de suas terras e ficaram um ano e
sete meses na beira da estrada. No último despejo, um jovem Guarani Kaiowá
suicidou-se, cinco pessoas morreram atropeladas e um bebê de seis meses teve
óbito por envenenamento. A aldeia, o que restou dela, fica sitiada por uma
plantação de soja. Os acessos, quando a expedição para lá se dirigiu, foram
impedidos por caminhões e por um dispositivo de arar a terra. Homens armados
circulavam pelas redondezas bordo de veículos. Depois de contatos telefônicos
com a Funai, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça chegaram ao local
(três agentes da PF e dois da Funai). A visita foi realizada, mas envolveu
contatos com o dono da fazenda ao redor da aldeia. Na conversa, e como se
tivesse direito para tanto, o proprietário conhecido como Raul “Português”
tentou obter nome e RG dos(as) participantes da Expedição.
A presença de psicólogos(as) na
expedição, teve como objetivo avaliar aspectos relativos à saúde mental da
população indígena na região. Com as repetidas ameaças de morte, as pessoas
vivem em permanente estado de tensão, afirma o conselheiro do CFP, Pedro Paulo
Bicalho. O psicólogo Alessandro Campos acrescenta que os(as) indígenas não
dispõem nem mesmo do tempo necessário para concluir o processo de luto. Todo
esse sofrimento resulta em tragédias, como o aumento do número de suicídios na
população indígena – fato que foi especialmente realçado pelo Mapa da
Violência/2011, realizado pelo Instituto Sangari para o Ministério da Justiça.
Vale lembrar que mais de 50 mil indígenas do povo Guarani Kaiowá que hoje sobrevivem
em oito reservas demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio em todo o Brasil
enfrentam situações parecidas.
(...) A falta de profissionais
para a demanda das aldeias também agrava o precário acompanhamento que é muito
mais paliativo do que o exercício de uma política pública de prevenção. (...)
Há ainda a degradação ambiental, o confinamento, a escassez de recursos como água
e comida. Durante a expedição, por exemplo, ficou constatado que, em algumas
aldeias, há três dias não havia comida nem para as crianças. Como isso não
bastasse, outras formas de comprometimento são evidentes. “ Sua cosmovisão, que
possui a função de organizar a subjetividade individual e o corpo social, é
permanentemente golpeada e destruída por grupos religiosos que não respeitam
suas crenças, por jagunços e por um Estado negligente e conivente com a
violação de direitos humanos”, diz o psicólogo e professor Alessandro Campos.
Ainda que a expedição tenha
alcançado seus objetivos mais imediatos, o educador social e um dos
coordenadores da iniciativa representando o Tribunal Popular, Givanildo Manoel,
está ciente de que a luta dos Guarani Kaiowá do MS está longe do fim. “Fora do
Brasil o assunto tem muita repercussão; aqui dentro, menos”, afirma. Segundo
ele, o brasileiro tem uma visão eurocêntrica do assunto: “Muitos acreditam que
os indígenas utilizam espaços demais, que a terra deve ser utilizada de outras
maneiras. O olhar do agronegócio está presente na visão do brasileiro e ninguém
pensa nas consequências que isso pode trazer para o Brasil e para o mundo”,
afirma.
Esforços como o da expedição e os vídeos e fotos produzidos nas aldeias
talvez ajudem a modificar a situação. Pela Internet, podem revelar aquilo que
os satélites não têm condições de mostrar e o que muitos(as) outros(as)
preferem não ver.